| Jornal online - Registo ERC nº 125301



Publicado sexta-feira, dezembro 31, 2004 | Por: Notícias do Nordeste

Quem tem medo da democracia?
Habitualmente somos confrontados com atitudes, gestos, preferências, ideias diferentes, modos de encarar a vida; com uma religiosidade fervorosa ou com um ateísmo materialista, cuja essência mais elementar reside numa palavra simples mas de um valor inestimável. A essa palavra chamamos liberdade. O livre arbítrio é isso mesmo: a decisão individual, a liberdade de escolha, de comportamento, de opinião, de acção. Mas é necessário sublinhar que essa acção, opinião ou comportamento para ser plenamente livre não deve interferir ou pôr em causa a liberdade do próximo.
A este modelo de responsabilidade e respeitabilidade pelo outro chama-se democracia. A palavra tem uma origem remota e etimologicamente deriva da composição do termo grego “demos” que significa povo, e “kratos” que significa autoridade. Sinteticamente, a democracia representa a autoridade do povo, numa acepção geral relativa à organização de um regime político-social onde cada indivíduo, independentemente da cor, sexo, filiação política ou credo religioso, tem o direito a ser reconhecido como membro igualitário dentro de uma comunidade, estando-lhe assegurado o direito de participação da direcção e gestão dos assuntos públicos.
É a democracia que permite a institucionalização da liberdade, garantida, no caso português, pelo documento orientador, ou Lei fundamental do estado de direito democrático, que é a Constituição.
Na essência do seu corpo teórico, a Democracia estabelece um variado leque de princípios e de práticas cujo intuito último é a protecção da Liberdade Humana.
Apesar de frequentemente se radicar a origem do modelo democrático na Grécia clássica, e o seu primeiro esboço teórico e doutrinário em pensadores como Aristóteles, só muito recentemente é que a Democracia se estabeleceu como sistema capaz de garantir alguns direitos e liberdades fundamentais.
Na era Moderna, é à filosofia moralista de Montesquieu que se deve um fundamental contributo, sendo certo que o seu esquema permanece ainda como o principal arquétipo da actual teoria política. Segundo o seu pensamento, expresso no livro fundamental intitulado “De l'esprit des lois (1748; Do espírito das leis)”, a liberdade política seria assegurada pela separação e independência dos três poderes fundamentais do estado: legislativo, executivo e judicial. E sem se aperceber do verdadeiro alcance desta sua formulação, Montesquieu acabou por conceber os princípios que viriam a ser o fundamento da democracia contemporânea.
Não menos importante, foi a autêntica “Revolução” teórica/político-social concebida e tornada pública pelo “filósofo de Genebra” Jean-Jacques Rousseau.
No “Discurso sobre a origem e fundamentos da desigualdade entre os homens”, texto produzido para um concurso lançado pela Academia de Dijon em 1754, Rosseau formulou um debate essencial ao questionar “a origem da desigualdade entre os homens e se ela é autorizada pela lei natural”. Evidentemente que numa sociedade de poder absolutista, esta questão surgiu como uma “diáclase mental”, demasiadamente evoluída para poder ser debatida, e o texto acabou por ser considerado como despropositado, inconcebível e estéril. Contudo, a sua semente tinha caído numa terra amordaçada, ávida de liberdade, e esta interrogação do autor do “Contrato Social” acabou por germinar os principais conceitos onde havia de assentar a grande reivindicação da Revolução Francesa: a trilogia que reconhece ao homem a Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade.
É com a Revolução Francesa, que logo de seguida é exportada para a América, que se inicia o processo de consolidação das sociedades democráticas. Desde então, 1789, o mundo ocidental mudou, apesar de muito boa gente considerar que essa mudança se tem processado de uma forma demasiado lenta, rudimentar e, o que é mais lastimável, sob o controle atento e perverso de um modelo económico que dá pelo nome de capitalismo. Mas esta seria uma temática que nos levaria a uma discussão de longo teor, sem dúvida interessante, mas impossível de expor num espaço de opinião como este....
Vamos então ao que verdadeiramente interessa abordar com este meu escrito.
O sistema democrático actual, encarado ainda como muito deficitário, tem vindo a ser limado, apurado e desenvolvido em muitos países deste nosso planeta, mas em Portugal, e apesar da sua juventude enquanto modelo político e social, o sistema parece cada vez mais Combalido por uma doença endémica cujo principal vírus é a incapacidade de ouvir o outro, de tolerar o outro, de respeitar as ideias do outro, de aceitar as criticas e propostas do outro; de respeitar e considerar que o adversário político também é capaz, também sabe fazer e também é inteligente.
Se descermos à escala da nossa região, então a doença agrava-se exponencialmente e os cidadãos afectados por tal mazela multiplicam-se numa velocidade tão real quanto irracional.
Democracia nada mais é, ou nada mais deveria ser, do que a responsabilidade cívica que cada um de nós deveria exigir do seu semelhante. Esta responsabilidade cívica assenta no direito implícito de participar integralmente no sistema, ou se quisermos, no regime, exercendo directamente o poder político, ou depositando pela via do voto a confiança de representação em outras pessoas.
Mas é precisamente aqui que surge o conflito, a intolerância, a tal irracionalidade, e sobretudo a irresponsabilidade cívica, quer de quem elege, quer de quem é eleito.
Se atentarmos no exercício público dos direitos instituído pelo sistema democrático com o que é deparamos na nossa região?
Deparamos com um ambiente de intolerância generalizada, onde o que mais conta não é o interesse público, mas sim o interesse de uma “seita”.
Deparamos com uma total ausência de diálogo entre eleitores e eleitos, entre poder e oposição.
Deparamos com atitudes de eleitos que emanam de mentes verdadeiramente despóticas.
Deparamos com uma perda gradual de direitos fundamentais.
Deparamos com submissões absurdas que não raras vezes resultam da necessidade de um trabalho, de um emprego.
Deparemos com uma total falta de respeito entre quem exerce o poder e a oposição que procura esse mesmo poder.
Deparemos com uma generalizada falta de empenhamento pela “coisa pública”, onde as propostas dos que se opõem, mesmo que magnificas ou de manifesta utilidade pública, vão parar ao caixote do lixo, só porque foram pensados e concebidas pelos opositores.
Deparamos com guerras de capelinha inconsequentes e de uma esterilidade absurda.
Deparamos com certos moralistas paroquiais que destilam uma ignorância venenosa numa personalidade hipócrita, vestida a rigor na praça de ocasião.
Deparamos com uma turba de surdos, onde só se ouve o próprio umbigo, porque o umbigo de cada um destes intervenientes com um pouquinho de poder, constitui-se sempre como o centro do universo. De um certo universo. De um mesquinho, depauperado e restrito universo.
Na essência, o sistema democrático na nossa região apresenta-se ainda como muito mais arcaico do que o modelo que no distante ano de 1789 dava os seus primeiros passos em França.
No fundo, um número significativo de políticos transmontanos nunca foram verdadeiramente tocados pelo “espírito da democracia”, embora utilizem sempre os “chavões” democráticos e até sejam capazes de se apresentarem em público com o cravo ao peito no dia 25 de Abril.
Mas a democracia não se resume a esse alarido folclórico ou à desenfreada caça ao voto!
Não se resume aos sorrisos dentífricos, abraços, beijos e comoções dos quinze dias que antecedem qualquer acto eleitoral.
A democracia requer resultados visíveis, traduzidos em concretizações de evidente benefício público.
A democracia requer uma confiança absoluta em quem é mandatado pela força do voto. E essa confiança, como muito bem se sabe, não existe.
Ser político de ascendência democrática requer “alma”. Requer uma elevada dose de humanismo. Requer um elevado poder de encaixe perante as criticas que colidem com o egocentrismo antidemocrático de muitos dos exemplares de circunstância que por aí existem, e que não raras vezes delongam a sua inércia num efémero pedaço de poder concedido pela “boa vontade” popular.
Ser democrata requer a aceitação da diferença do outro, requer ponderação, análise, justeza, compreensão, respeito, integridade, verdade, diálogo, entrega, competência, altruísmo e muitos, muitos mais “predicados” que só por si dariam para encher este texto.
Quando alguém se responsabiliza e se apresenta como susceptível de ser mandato pelo povo, então tem que saber ouvir esse povo. Tem que ter a capacidade de argumentar construtivamente, de confrontar saudavelmente a sua opinião e os seus conceitos com as opiniões e os conceitos dos seus antagonistas.
Tem que ter capacidade de acção e de aceitação do mais adequado para resolver os problemas colectivos.
Todos os que se submetem a sufrágio não podem fugir, ou fingir, ou ignorar. Quando se aceita um desafio de responsabilidade pública, tem que se ter a mais absoluta obrigação de o saber concretizar, de ter a hombridade de verter o suor até à última gota, independentemente de interesses partidários ou de pretensões ignobilmente carreiristas. E, sobretudo, tem que se ter a capacidade de saber “jogar limpo”....
Em democracia a ignorância, a intolerância e a demagogia conluiam mal. E o resultado quase sempre se resume ao ensinamento expresso nas palavras que Mahatma Gandhi nos deixou: “a intolerância é em si uma forma de violência e um obstáculo ao desenvolvimento do verdadeiro espírito democrático”.
Que fique então esta reflexão de Mahatma Gandhi para o ano de 2005, que como se sabe, no nosso país, agendará dois importantíssimos actos eleitorais.Que o ano de 2005 seja um excelente ano para todos os portugueses.
Luis Pereira

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