Sei que te lembras daí


Sei que te lembras daí, onde estás. Porque os mortos têm memória; aquelas memórias que deixam a quem amam e que é espólio inalienável. Quero que te lembres hoje dessa flor a que aspiravas nos teus silêncios antigos.
Hoje o tempo é outro. Um tempo cinzento e tão debruado de negro como aqueles fins de tarde em que o bufo, chamavas-lhe tu, passava e martelava no chão as tachas das botas que calçavam uns pés de arrasto.
Tínhamos uma telefonia antiga que sintonizava em onda curta a Rádio da Liberdade.
Colocavas um copo de água em cima do rádio para os bufos não ouvirem. Dizias tu que assim não ouviam que tu estavas a ouvir as notícias livres.
Lembro-me dos teus silêncios e de pronunciares alguns desabafos quando o Marcelo falava. Era um fascista, esse tal de Marcelo, o herdeiro do Salazar. Um fascista como tantos outros de hoje, digo eu hoje.
A princípio não entendia porque te zangavas, ou porque sorrias, com as palavras da rádio. Mas todos os dias, metodicamente, lá ias tu encher o copo de água que colocavas em cima do aparelho que zunia sons e ruídos longos. Lembras-te?
E ficavas assim, sentado, a olhar não sei o quê. Traçavas teu dedo indicador oblíquo sobre os teus lábios se eu ao brincar falava mais alto, porque a rádio não podia ter muito volume.
Sei agora que tinhas medo. Medo talvez de nos perder. E por isso tinhas aquele ritual estranho e sussurravas palavras inaudíveis aos ouvidos da mãe.
Eu era criança e não entendia a tua aflição, a tua inquietação, os teus desejos mais secretos.
Eras um homem triste. Faziam-te triste.
Mas um dia, ainda muito cedo, gritaste. A principio não entendi toda aquela algazarra, toda a tua alegria a jorrar logo pelo cedo da manhã, falavas apenas uma palavra de que eu não entendia o sentido, e exclamavas, gritavas, sorrias, e aquela palavra sempre a verter dos teus lábios como se um dique de cravos tivesse explodido do teu coração. A palavra era simples e achei-a bonita.
Liberdade: era esse o vocábulo que dizias.
Estávamos no dia 25 de Abril de 1974. Desde essa altura que a fonética da palavra Liberdade se me entranhou na carne e se tornou num órgão vital da minha existência.
Liberdade…
Pai…agora sou eu que ando triste. Fazem-me triste.
Pai, este dia é teu. Este dia é meu. Este dia é nosso!
Hoje o tempo é outro. Um tempo cinzento e tão debruado de negro como aqueles fins de tarde em que o bufo, chamavas-lhe tu, passava e martelava no chão as tachas das botas que calçavam uns pés de arrasto.
Tínhamos uma telefonia antiga que sintonizava em onda curta a Rádio da Liberdade.
Colocavas um copo de água em cima do rádio para os bufos não ouvirem. Dizias tu que assim não ouviam que tu estavas a ouvir as notícias livres.
Lembro-me dos teus silêncios e de pronunciares alguns desabafos quando o Marcelo falava. Era um fascista, esse tal de Marcelo, o herdeiro do Salazar. Um fascista como tantos outros de hoje, digo eu hoje.
A princípio não entendia porque te zangavas, ou porque sorrias, com as palavras da rádio. Mas todos os dias, metodicamente, lá ias tu encher o copo de água que colocavas em cima do aparelho que zunia sons e ruídos longos. Lembras-te?
E ficavas assim, sentado, a olhar não sei o quê. Traçavas teu dedo indicador oblíquo sobre os teus lábios se eu ao brincar falava mais alto, porque a rádio não podia ter muito volume.
Sei agora que tinhas medo. Medo talvez de nos perder. E por isso tinhas aquele ritual estranho e sussurravas palavras inaudíveis aos ouvidos da mãe.
Eu era criança e não entendia a tua aflição, a tua inquietação, os teus desejos mais secretos.
Eras um homem triste. Faziam-te triste.
Mas um dia, ainda muito cedo, gritaste. A principio não entendi toda aquela algazarra, toda a tua alegria a jorrar logo pelo cedo da manhã, falavas apenas uma palavra de que eu não entendia o sentido, e exclamavas, gritavas, sorrias, e aquela palavra sempre a verter dos teus lábios como se um dique de cravos tivesse explodido do teu coração. A palavra era simples e achei-a bonita.
Liberdade: era esse o vocábulo que dizias.
Estávamos no dia 25 de Abril de 1974. Desde essa altura que a fonética da palavra Liberdade se me entranhou na carne e se tornou num órgão vital da minha existência.
Liberdade…
Pai…agora sou eu que ando triste. Fazem-me triste.
Pai, este dia é teu. Este dia é meu. Este dia é nosso!














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